Ivan Nery Cardoso
Engata a primeira. Abaixa o freio. Anda.
Para. Puxa o freio.
O céu é de um azul imaculado, imenso,
impiedoso. Não chove há semanas, e a secura já se percebe nos lábios rachados
pela cidade, um grave incômodo. O ar parece de um amarelo sujo, esconde o
perfil dos prédios mais distantes. O sol, lá em cima, brilha um pouco demais,
tornando o dia quente -muito quente- e isso significa uma coisa apenas: o rio,
que corta a cidade em duas fatias desiguais, vai estar cheirando mais do que o
normal. As águas paradas de seu curso artificialmente retilíneo fervem sob o
calor abrasante, exalando um refinado aroma pungente que atravessa as barreiras
físicas dos vidros escuros, vence as atmosferas postiças de gleid autoesporte e
se faz sentido pelas muitas narinas que já o conhecem bem: carniça fermentada,
com notas de enxofre.
Engata a primeira. Abaixa o freio.
Anda. Para. Puxa o freio.
Filha da puta, sacana de merda! Vai
fechar a puta que te pariu! Tá querendo o que entrando assim, porra? Ô seu
bosta, enfia essa buzina no teu cu, caralho! Não tá vendo que essa merda não tá
andando pra ninguém, escroto? Tá achando que essa caceta vai fazer meu carro
voar? Ah, te foder! Calor do caralho! Olha aí, já tô todo cagado de suor!
Engata a primeira. Abaixa o freio.
Anda. Para. Puxa o freio.
As motos passam despreocupadas nos
corredores vazios, desviando dos retrovisores emparelhados, os rostos
escondidos por capacetes. Os ônibus resfolegam como grandes paquidermes, movem-se
pesados, a passos curtos. Nas traseiras dos carros, mensagens aos colegas
estacionários: “Tá estressado? Vá surfar”, diz o Corsa sedan. “Foi deus quem me
deu”, se orgulha o Gol 1.4. “Me lave”, clama o encardido Celta branco na poeira
que o limpador de parabrisas não alcança. Uma família adesiva sorri a todos:
mãe, pai, dois filhos e um cachorro, nenhum deles afetado pelo estresse. Devem
ser surfistas.
Engata a primeira. Abaixa o freio.
Anda. Para. Puxa o freio.
Devia deixar um desodorante no carro,
talvez no porta-luvas, é só tirar os cds de lá, colocar num daqueles estojos
que cabem uns 50, aí dá pra deixar na porta, fica até mais fácil de pegar, será
que ainda vendem esses estojos, ninguém usa cd mais, caramba, que música chata,
não tem nada de bom no rádio a essa hora, vontade de ouvir Lou Reed, cadê o cd,
cadê, cadê, achei bob marley, faz tempo que não escuto, old pirates, yes they rob I, sold I to the
merchant ship, será que passa barco no rio hoje em dia, quer dizer, além
dos que tentam limpar essa água podre, cheia de lixo, espuma flutuando, olha lá
quanta garrafa de plástico boiando, como é que meu avô conseguia nadar aí
quando era jovem, bom, naquela época o rio era outro, a água era limpa, tinha
margem natural, tinha árvore, não tinha essas avenidas, quem veio primeiro, a
avenida ou a poluição?
Engata a primeira. Abaixa o freio.
Anda. Para. Puxa o freio.
Os motores tremem, ansiosos para
correr, gritar, ranger; reflexo desses motoristas enclausurados, do rádio
ligado, dos sovacos molhados. De dentro de um ônibus vermelho, a cabeça de um
motorista espia para fora da janela o retrovisor lateral, enquadrando o rosto
no reflexo: primeiro o lado direito, depois o esquerdo. Ajeita as sobrancelhas
grossas com o dedo médio e com um único mindinho alisa a superfície do nariz,
analisa a textura da pele, como se à procura de evidências de um cravo ou uma
espinha já espremidos. Coloca os óculos seguros por um cordão no pescoço e se
observa mais atentamente. Olha os dentes, tenta tirar algo com a língua, alisa
os cabelos que crescem apenas nas laterais, começa a pentear para os lados os
fios espessos do bigode com o polegar e o indicador, mas o ronco das motos e
dos carros se acentua mais uma vez, anunciando a iminência do movimento, o trânsito
que anda.
Engata a primeira, abaixa o freio, e
volta a desaparecer detrás de seu volante.
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