Daniel Frazão
O trombadinha atravessou a avenida na
faixa de pedestres, todo serelepe, com as mãos prestes a mais um assalto.
Parecia um saci sem cachimbo na boca ou perna amputada. Tinha apenas um
cachecol vermelho para proteger o pescoço do frio daquela manhã de terça-feira,
uma roupa suja no corpo e um sorriso na cara como se seu ilícito fosse quase
uma dádiva.
Acompanhei tudo pelo para-brisas, parado
no farol a poucos metros da cena. O saci se aproximou de um táxi e interpelou o
taxista com uma risada e um chiste antes de mostrar o canivete que guardava sob
o elástico de uma calça de moletom desbotada. Pediu toda a féria que o
motorista acumulara entre o final da madrugada e o início da manhã.
O taxista, por um momento, hesitou em dar
o dinheiro, com a esperança de que o farol verde pudesse salvá-lo, assim como a
coragem de dar um cavalo de pau com o carro e deixar o trombadinha falando
sozinho. Mas o saci talvez tivesse dons que só conhecíamos nas histórias que
nossas avós contavam e parecia até controlar as fases do semáforo, como um
guarda da CET.
Cientes ou não do que ocorria a poucos
metros de seus respectivos narizes, os outros motoristas buzinavam, mais em
protesto pela demora do farol do que pelo cu doce do taxista ou pela insolência
do meliante. Eu, ao contrário dos outros, observava o assalto com toda a
paciência. Torcia para que o bandido se desse bem.
Eu tinha acordado de ovo virado e queria
que o resto do mundo se fodesse – e isso incluía o taxista que eu sequer
conhecia. Além disso, a bem-aventurança do assalto seria uma vitória do
trombadinha em sua causa: roubar dos outros em beneficio próprio, sem distinção
de raça, credo, sexo ou filiação política. E sempre admirei esse tipo de
engajamento.
Tive dó do taxista por alguns instantes,
não vou negar, pela hipótese de perder tanto dinheiro num estalar de dedos, mas
logo me conformei e percebi que essas coisas fazem parte da vida e que eu
poderia ter dado a falta de sorte de estar em seu lugar de vítima. Bastava ter
parado o carro um pouco mais à frente, na primeira fileira depois da faixa de
pedestres.
A hesitação do taxista, por sua vez,
poderia ter feito o saci meter os pés pelas mãos e cumprir a ameaça que existia
na lâmina do canivete. Em uma situação comum, a polícia poderia chegar a
qualquer momento para interromper o crime e colocar o meliante como um bicho no
camburão. Mas apesar de corriqueira, aquela não era uma situação comum. O
trombadinha parecia deter o tempo com um feitiço.
E como num passe de mágica, o taxista
enfim resolveu se desfazer da grana. Tirou um bolo de dinheiro não se sabe de
onde e o entregou ao trombadinha enquanto os carros da avenida transversal
insistiam em passar de forma ininterrupta à sua frente. Ávido diante daquele
tesouro, em notas gordas, médias e magras, o saci abriu um leque com as cédulas
em suas mãos céleres, com dotes de crupiê.
Ao completar o assalto, o trombadinha
voltou a correr no sentido oposto de onde viera e se escafedeu em alguma rua
por dentro do bairro. O taxista respirou fundo com um sentimento de redenção
por sair vivo, o farol abriu e ele acelerou em busca de outros passageiros que
o ajudassem a, pelo menos, diminuir o prejuízo com o roubo. E eu continuei o
caminho para o trabalho, enfrentando o mau humor e a barbeiragem alheia.
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